Ela abre o armário e ameaça me dar uma bronca: “Não dá para comprar um potinho mais novo pra guardar esses temperos, não?!”. Não quero. Quero minha latinha velha e cheia de especiarias, a mesma que já guardava as especiarias na casa de minha infância e que me faz viajar simultaneamente ao passado e a outros lados do mundo, onde o curry, a páprica, o açafrão, o zaatar e o cardamomo misturam-se numa orgia de aromas e sabores para temperar o ar que se respira. Minha lata velhinha é antítese da caixa de Pandora. Aberta, só liberta o que é bom, para fora dela e para dentro de mim. Liberta, junto dos cheiros, a memória das outras latas: a de sorvete (lá no comecinho da infância, antes dos plásticos impessoais); as vermelhas com filigranas douradas que, abertas, mostravam biscoitos amanteigados e cobertos de açúcar; aquela que guardava os aviamentos de costura de minha mãe e a outra que guardava o ardido e sempre acessado merthiolate – que não era spray, tinha séptica e temida pazinha que tocava as feridas em nossos joelhos esfolados, eternamente cobertos por band-aids que dividiam com o merthiolate a morada na lata. Merthiolate não arde mais e passou a ser coisa errada guardar alimento em latas, que oxidam. Vivemos em ambientes mais assépticos, porém mais mais insípidos. É errado sentir qualquer coisa que provoque ardência, mas parece que estamos perdendo, junto, o ardor. Qualquer coisa que oxide também passou a ser errada. Passamos a ser errados nós, que oxidamos. Transformaram o merthiolate para que não sintamos mais sua ardência, mas a verdade é que, nesse processo, temos nos transformado nós mesmos. Não sentimos mais com a mesma intensidade: ardor ou qualquer outra coisa, ponto. Sentir parece ser coisa errada, como oxidar.

Em lugar de latas, surgiram plásticos transparentes que não trazem estampas ora florais, ora de pássaros, ora orientais, ora gregas, que faziam a imaginação passear e despertavam vontade de um dia voar com os pássaros, viajar àqueles lugares, às vezes lugares no passado, os que só podíamos visitar nos livros. Os plásticos, melindrados por sua incapacidade de criar memórias dentro de nós, insistirão em permanecer no ambiente através dos séculos. É só assim que existem: se não conseguem nos dar coisas boas para lembrar, fazem sua presença constante, aviso permanente de sua existência transparente, que não nos desperta sonhos.

Não quero meus armários cheios apenas de plásticos que só me fazem olhar através e não para eles. Plásticos que não ganham meus olhos e não fazem minha mente vagar no caminho entre o armário e o balcão onde vou pousá-los. Quero minhas latas que, junto das especiarias, guardam minhas memórias. Quero minhas latas oxidadas pelo tempo, como oxidamos nós também. Na oxidação delas, vejo a passagem do tempo, mas aí – surpresa – me dou conta: vou achando bonito esse trabalho das manchas desenhadas pelo tempo sobre as estampas. Acho que conversam entre si, as marcas oxidadas e as estampas, e há harmonia ali.

Começo a perceber marcas ao redor de meus olhos, principalmente nos cantos que insisto em espremer, ao rir. Há marcas no meio de minha testa, que teimo em franzir, a vida inteira, ao refletir, demonstrar incompreensão ou estranhamento. São marcas oxidadas, desenhadas por meu riso, desenhadas por minhas reações ao que se apresenta diante de mim, desenhadas pelo tempo. Não hei de querer rosto plástico, através do qual se olhe sem que se percebam marcas, mas também sem história, sem estampa, sem expressão. Em meu rosto, como em minhas latas, as marcas da oxidação haverão de ser bem-vindas. Haverá história, haverá memória, haverá harmonia ali.