Esta é a massa de panqueca feita lá em casa desde que eu me entendo por gente. A receita vem de um livro que minha avó deu a cada uma das filhas. Quando tia Vera foi morar em outras esferas, minha mãe herdou o livro dela e me passou o seu. É cheio de receitas boas à beça ali, mas o título é um tanto ridículo: “Pratos inesquecíveis na opinião de 3 maridos”. Eu acho oportunista, induz a pensar – retrato de uma época – em comidinha que a mulher faz para agradar ao marido. Se a pessoa começa cozinhando para arranjar ou prender marido, já começou errado. Ou gosta-se de cozinhar, ou não se gosta. Ninguém é obrigado, mas se cozinha, faz para agradar, primeiro, a si mesmo. Tem também o fato de que pessoa que precisa ser amarrada ou presa, em geral, é pessoa que você devia deixar livre pra ir embora de uma vez. Se voltar para você, é porque ninguém quis essa porcaria, como eu li uma vez, ri muito e concordei (sabedoria popular é fogo). Maria Beatriz Marinho dos Anjos fala da mesma coisa, de forma mais delicada: “Então o amor e a amizade são isso… Não prendem, não escravizam, não apertam, não sufocam. Porque quando vira nó, já deixou de ser um laço”. Comida deve servir a isso: criar laços; nós, nunca!

Divaguei, mas voltando ao livro: na verdade, são os próprios maridos os autores cozinheiros e, portanto, o título poderia ser “na opinião de três cozinheiros”, ou “três gourmands”, sei lá! O que acho interessante é que, nessa época, em que minha avó comprou os livros e deu às filhas, cozinha era lugar de mulher. Um livro de receitas assumidamente feito por homens, então, não venderia. Já quando eu era menina e gostava de cozinhar, era olhada com estranheza. Aí, então, lugar de mulher já era fora da cozinha, disputando oportunidades com os meninos e, depois,  mercado de trabalho com os homens. Poucas amigas minhas cozinham e há, talvez, sobre as que cozinham, na minha geração, um estigma de “tantas mulheres queimaram seus soutiens para nos libertar e você aí, querendo nos trazer de volta à prisão?!”.

Eu cozinho, amo cozinhar. Nos momentos em que precisei ganhar meu espaço no mundo, fui lá e conquistei o que me cabia, cercada por homens ou mulheres, tanto fazia. Não acho que tenha precisado, exatamente, guerrear. Também não tenho nada contra os soutiens. Acho que dá para ser uma mulher de cabeça erguida sem precisar deixar os peitos precocemente caídos*. Não me sinto menos feminista sendo feminina. Chegamos a um ponto em que a liberdade não parece estar mais atrelada a “aprisionar” ou não os peitos ou ao lugar onde escolhemos estar: dentro ou fora da cozinha, dentro ou fora das disputas pelo mercado de trabalho.

Outro dia, uma amiga postou uma foto de seu filho confeitando um bolo, ele que é menino que vive em campeonatos de futebol, orgulho de qualquer pai machão – o que não é, de forma alguma, o caso do pai dele. Fiquei feliz demais vendo aquilo! Que me conste, depois de confeitar o bolo o menino continua inteiro, não perdeu nenhuma parte essencial de sua anatomia. E estava ali amarradão, tanto quanto ao aparecer nas fotos jogando futebol, afinal cozinha é um espaço lúdico pra caramba! Há muito a evoluir, mas em várias partes deste mundo, que bom, futebol já pode ser lugar de menina; cozinha, lugar de meninos (sim, os meninos também são prisioneiros desses paradigmas sexistas). Bom ver que, finalmente, lugar de menina ou de menino, lugar de mulher ou de homem, lugar de gente, enfim, é onde a gente queira estar.

*Há, atualmente, estudos que desqualificam os soutiens e seu significado literal, de suportes. Não acredito nesses estudos. Creio, bem mais até do que nos soutiens, na força da gravidade. Vida longa e prosperidade aos soutiens, que combatem força tão poderosa!!

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Vamos às panquecas, então, página 90, já gasta, do tal livro:

Massa de Panqueca

– 1 xícara (chá) de farinha de trigo
-1 xícara (chá) de leite (ou caldo de carne)
-3 ovos
-1 c (chá) de manteiga
-sal
-manteiga para untar a frigideira

Bata tudo no liquidificador. Pincele uma frigideira antiaderente com pouquinha manteiga e despeje aproximadamente meia concha de massa, movendo a frigideira de forma que a massa cubra toda a superfície e fique *bem* fina. Assim que cozinhar, vire e se souber fazer aquela virada com emoção, jogando a massa pra cima, é diversão garantida. O treino até chegar lá, mais divertido ainda! Faça todos os discos e, depois, recheie com o que seu coração mandar. As minhas aí da foto foram de espinafre e ricota refogadinhos com cebola, ervas e especiarias (usei orégano, manjericão, noz moscada, pimentinha-do-reino). Por cima, levaram um molhinho bechamel com queijo ralado.