Abro os olhos e lá está ele me olhando, com seus grandes e doces olhos azuis estrábicos. Vem, então, me dar bom dia, todos os dias. Sigo para minha jornada e no início da noite, ao regressar, não guardo muitas certezas, mas uma, sim: Tim estará na porta, quando eu a abrir, me esperando com miados e ronronadas felizes. Infalível, fiel, todos os dias. Como ele descobre que estou chegando? Não sei. Olfato, intuição, seja lá o que for, ele estará lá esperando, na hora certa, seja qual for. Miará longamente – é gato falante – e parecerá me contar as grandes aventuras que viveu enquanto estive fora.

Sempre foi enorme, disseram-nos que foi o primeiro de sua ninhada a ver a luz do mundo. Imaginamos que os irmãos, cansados do incômodo aperto que ele devia provocar lá na barriga de sua primeira mãe, o expulsaram na frente: “Sai logo, Grandão! Deixa a gente respirar!”. E ele saiu, siamês vira-lata albino, um tanto cegueta, como quase todo albino, com pernas longas e, a princípio, praticamente só orelhas.

Em nosso primeiro contato, meu grandão era um filhotinho com menos de um mês, em que ainda se via a barriga rosada, hoje coberta por fartos pelos, que ele espalha por onde se esfrega (e como se esfrega, é todo carinhos e afagos!). Naquela barriguinha rosa, vários pontos pretos. Pulgas, várias. Assim foi nosso primeiro toque: ele deitado em meu colo, de barriguinha para cima, pintada de pulgas, e eu as catando, já abatidas pelo comprimido algoz das minúsculas criaturas. Por outro lado, não tinha ainda os pontinhos pretos no focinho, adquiridos depois de muitos e muitos banhos de sol. Dizem que gatos relutam em oferecer a barriga, sentem-se ameaçados. Tim parece ter gostado dessa primeira experiência e passa a vida me oferecendo a barriga para afagos. Temos tido, ao longo dos anos, verdadeiras sessões de shantala felina. Lá se vão mais de treze anos* e nosso ritual persiste.

É gato com gosto musical, tem música preferida. Se tocamos esta aqui, temos certeza de que ele sairá de onde estiver e vai rolar no tapete de um lado para o outro, gato feliz e ronronante. Dá um barato nele, não sabemos por quê.

A outra certeza é de que, a qualquer momento em que eu vá tomar banho, o encontrarei, já deitado na banheira, esperando seu quinhão de água corrente. A seguir, ele me conduzirá à cozinha e miará para a geladeira. Ração seca não basta. Precisa de ração molinha, mais agradável à sua ausência de dentes laterais, já levados há muito tempo por uma severa e silenciosa infecção, que quase o levou de nós. Perdeu os dentes, mas não a fleuma. Tem ar imponente e, à primeira vista, não se vê o trapalhão desastrado.

Há também a certeza de que, ao pisarmos o rabo de seu irmão, no escuro, ele surgirá como uma flecha e não sossegará enquanto não colocarmos Ravel diante dele, para que examine, cheire, lamba, cuide de Ravel, seu herói; ele, o fiel escudeiro. Enquanto estivermos, nós, examinando, com o irmão no colo, no alto, pedindo desculpas – humanos são esses seres brutos e desastrados-, ele nos dará levíssimas mordidinhas nos tornozelos, pedindo: “Deixa eu ver também, quero saber se ele está bem”. Nas mordidinhas, também um aviso: “Não quero machucar vocês, mas sei que posso. Não façam mal a ele”. Perdeu os dentinhos laterais, mas as presas afiadas e que poderiam fazer um estrago continuam lá, intactas. As mordidinhas de Tim nos mostram que ele tem consciência de que as presas existem e sempre escolheu não usá-las.

Em meio a toda a doçura, a certeza de que, em algum momento do dia, um gato descacetado brotará de dentro dele e me fará persegui-lo, hora de brincar de esconder.  Virá me dar um bote, gato fantasminha, meio de pé, e sairá correndo, disparado. Vai esconder a cara, deixará aquele traseirão de fora, com rabo abanando, e estará feliz da vida, crente que se esconde. Se ele não nos vê, também não o vemos, óbvio!

Há poucas certezas na vida, mas em meio a tudo, uma: em algum momento do dia, Tim me fará sorrir e ser grata pelo dia em que catei suas pulgas e o trouxemos para casa. Quem tiver oportunidade igual, não hesite, não.

***

*Agora já são quase quinze anos e Ravel dá seus saltos nas estrelas. Tim ainda sente sua falta, nós também. Em Tim, a falta chega a virar doença. Ganhamos mais uma estrelinha em casa – Sukha, que está mais para cometa. A gentileza de Tim com ele é enorme e não seria diferente, afinal ele é e sempre será meu gigante gentil.