Chegamos pela manhã ao Quilombo Kalunga. Carlos será nosso guia e nos leva, antes das trilhas, ao restaurante de suas irmãs, onde encomendamos almoço para o fim da tarde. Luana e Rosilene avisam que a comida estará pronta  no horário marcado, nos esperando no fogão a lenha, menos o peixe e a mandioca, que elas só fritam na hora.

Saímos dali e depois de várias subidas e descidas, pedras e pontes, encontramos os olhos inacreditavelmente azuis de Santa Bárbara. Parada longa para o banho, nado, meditação.  Retorno à trilha, onde nos aguardam formações que remetem a peixes pré-históricos. Após subida íngreme, rochosa, chegamos às Capivaras. Cada uma das quedas d’água cuida de retribuir generosamente a visita dos que percorreram o caminho árduo para vê-las. No finzinho de tarde é hora de regressar , seguir a trilha enquanto a luz por trás da vegetação nos oferece deslumbramentos. Tento registrar com a lente tudo o que vejo: medo de que o olho e a memória me falhem no futuro. O pessoal do grupo me apressa, todos estão famintos. Eu abro os braços para o céu, peço que se alimentem só por mais uns minutinhos daquela luz, vai valer a pena o registro. Eles riem, topam se alimentar de luz um pouquinho mais, feito os meninos lá do Brejo da Cruz.

Chegamos novamente à comunidade quilombola. Ali há  sorrisos que contrastam com a carne marcada a fogo dos que fundaram a comunidade, dos que fugiam do horror e buscavam um lugar onde simplesmente tivessem o direito de ser; alguns dos quais passaram a vida inteira com medo de deixar o quilombo e tornarem-se novamente  bichos maltratados nas mãos de humanos desprovidos de humanidade. Confinados ali no quilombo, em suas pequenas casas de pau e palha, eram livres. Essa foi a liberdade que lhes coube. Não  ter a  carne açoitada era liberdade suficiente.

Hoje, havia ali crianças lindas e sorridentes. Seus sorrisos, em contraste à dor de seus tataravós, é prova de que o homem, a exemplo da vegetação do cerrado, é capaz de superar o fogo com que foi marcado e regenerar-se. O homem, como a vegetação,  é capaz de se refazer das próprias cinzas, voltar-se para a luz e vicejar, nem que para isso precise de algumas gerações.

Maxwell, garotinho de sorriso luminoso,vem me pedir que tire uma foto dele. Depois chama o amigo Luiz Carlos para posar também. Me pede: “Tia, tira foto dos mato, que os mato são bonito”. Peço que me mostre os matos de que gosta. Ele vai na frente, empolgado, me apontando seus matos preferidos, sentindo-se importante no comando da sessão. Obedeço e os  matos que aparecem  aqui são os matos favoritos de Maxwell. Quer também foto do céu bíblico de fim de tarde, menino de olho bom, que sabe ver. Imagino Maxwell daqui a uns quarenta anos, fotógrafo renomado com uma história bonita iniciada ali nos Kalunga. Algo me diz que o  quilombo não comportará a liberdade do olhar de Maxwell. Torço que seja assim, mas que ele traga sempre o povo Kalunga dentro de si, que retorne sempre à sua comunidade quilombola.

Na cozinha, Rosilene e Luana cumprem o prometido: fritam mandioca e peixe de água doce que chega à mesa sequinho, quentíssimo, com pele crocante. Provo um dos melhores feijões que já  comi, plantado ali mesmo, como todos os legumes que provaremos. Há também galinha caipira, arroz, farofa de carne, farofa de jiló, cenoura, chuchu, maxixe (que o povo dali chama de maxixo), quiabo, abóbora, salada. Ali, paga-se pouco e come-se à vontade. Há quem chegue com pouca fome e mude de ideia depois de provar o feijão. Eu chego com muita fome, como de costume. Em casa dizem que eu não tenho uma solitária: a minha deve ser acompanhada, pra gerar tamanha fome. Perco a conta do número de vezes que volto ao fogão de lenha. Rosilene e Luana ficam felizes da vida me vendo comer tanto e elogiar a comida. São cozinheiras, ficam felizes vendo pessoas comendo sua comida com gosto.  Explicam generosamente como a preparam: tudo é  temperado somente com alho, exceto o frango, que leva um pouquinho de açafrão.  É aí que está a mágica, o que faz algumas pessoas serem cozinheiras e outras não. Há, na comida de cozinheiras, além dos temperos, dos condimentos, das especiarias, um não sei quê que dá alma à comida e a delas é cheia de alma. Há tanto sabor ali que desconfio que haja umas pitadinhas de mandingas daqueles negras bonitas do passado, que devem habitar aquela cozinha e certamente ajudam a aquecer o fogo que alimenta as panelas. Aqueceram minha alma. Poucas vezes uma cozinha mexeu tanto comigo. Talvez porque eu nunca tenha provado comida feita de forma tão essencial e tão boa. Fui feliz ali. Lugar que  alimenta corpo e espírito.