Nosso mundo acaba de perder Umberto Eco. O mundo acadêmico e o mundo literário ficam mais pobres.

Umberto Eco me fez compreender a Idade Média como nenhum livro de História foi, para mim, capaz. O acadêmico Umberto Eco me ajudou ao longo de minha dissertação de mestrado e de minha tese de doutorado, com seu “Como se faz uma tese”. A cada vez que tinha uma citação intrincada a fazer, recorria a ele. Adquiri o hábito de “fichar textos” ali. Minha primeira tarefa ao ingressar no mestrado foi comprá-lo, ler, fichá-lo – como orienta o próprio livro – e fazer uso dele ao longo da dissertação. A tarefa nos foi passada por um querido e pouco ortodoxo professor que também já não está entre nós, outro apaixonado pela Idade Média. Na reunião em que nos passou a tarefa, a primeira com aquela que seria a nova turma do Programa, um rapaz – que posteriormente se tornaria meu amigo – o questionou: “Onde compramos o livro?”. Ele respondeu: “Você pode experimentar o açougue da esquina de sua casa, mas se não encontrar lá, talvez uma farmácia. Se não tiverem também, você pode buscar na padaria. Se nada disso funcionar, talvez você deseje, finalmente cansado de procurar em lugares vãos, ir a uma boa livraria”. Eu o detestei naquele momento, achei cínico, debochado, grosseiro, disse a meu orientador que em menos de um mês podia esperar uma briga minha com aquele sujeito. Eu não tinha sangue de barata e se ele falasse assim comigo, não ficaria calada, era certo, o que seria um problema para nós, já que o debochado era o coordenador do Programa em que eu ingressava. Meu orientador sorriu e me disse: “Vamos aguardar, ok?”. Em menos de um mês, meus olhos já brilhavam a cada uma das loucas aulas do cínico e hoje é com gratidão e  imenso carinho que me lembro do que – fui compreendendo aos poucos – era sua forma ácida de nos instigar e a única forma que conhecia de fazer humor. Ele me dizia que eu era uma pessoa legal, mas tinha o mesmo defeito de um grande amigo dele: gostar de Estatística e de Séries Temporais.

Certa vez nos mandou ler um artigo que era uma desgraça. Ao longo da discussão sobre o artigo, todos jovens e prepotentes donos da verdade, descemos o sarrafo com força na autora. Ao final da malhação, ele nos pediu uma salva de palmas para ela. Olhamo-nos sem entender nada. Ele nos perguntou: “Quantos artigos vocês já publicaram, ó mentes iluminadas? Quando tiverem publicado muitos, e, quem sabe, alguns que prestem, terão o direito de atirar pedras”.  Era crítico como Umberto Eco, que afirmava que “as redes sociais dão o direito à palavra a uma legião de imbecis, que antes falavam apenas em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade”. Eu achava que já conhecia Umberto Eco, mas esse professor foi quem me apresentou a ele, à Idade Média. Foi quem me apresentou à minha própria vocação para as salas de aula. Certa vez me disse que, em mim, ser professora era vocação, e que “vocação é coisa séria, à qual não se deve dar as costas”. Homenagear Umberto Eco é, também, homenageá-lo e não consigo pensar em um sem pensar no outro. Tomara que ele consiga, agora, se sentar em um toco de árvore, numa clareira, ao lado de Eco, e bater um papo com ele, lá onde estiverem. Vai ser bate-papo longo e eu adoraria assistir,  passaria horas ali. A conversa acontece em uma floresta, daquelas que os dois amavam. Anoitece e os dois, juntos, acendem artesanalmente uma fogueira – que não servia só para queimar bruxas e hereges, podia e pode ser usada para fins mais nobres. Eu me sento à distância e ouço. Diante da sabedoria, é ajuizado calar e ouvir.

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“Escrevi um romance porque me deu vontade. Creio que seja razão suficiente para alguém pôr-se a narrar. O homem é um animal fabulador por natureza. Comecei a escrever em março de 1978, movido por uma ideia seminal. Eu tinha vontade de envenenar um monge. Creio que um romance possa nascer de uma ideia desse tipo, o resto é recheio que se acrescenta ao longo do caminho.”

“Como já disse em algumas entrevistas, só conheço o presente através da televisão, ao passo que da Idade Média tenho um conhecimento direto.”

“Afinal de contas, despertei para a pesquisa atravessando florestas simbólicas, habitadas por unicórnios e grifos […]”

“Assim, a Idade Média ficou sendo não o meu ofício, mas o meu hobby e a minha tentação constante, e eu a vejo por toda parte, de maneira transparente, nas coisas de que me ocupo, que não parecem medievais, mas que o são.”

Umberto Eco, trechos de “Pós-Escrito a O Nome da Rosa”, ed. Nova Fronteira, 1985.

Fotos: Sarah Lee, para the Guardian.