Eu tinha meu dia todo planejado: trabalharia pela manhã e faria compras de Natal à tarde. Seria minha primeira tarde mais livre. Quase antevéspera de Natal e eu não tenho um presente sequer comprado. Em outros tempos, eu surtaria com isso. Agora não.

Ontem à noite chegou a notícia de que a tia – mas tia/mãe – de uma querida amiga havia falecido e isso mudou os planos, as compras ficaram para segundo plano. Talvez eu tenha estado com a tia umas três ou quatro vezes na vida, mas sabia que minha amiga devia estar precisando de abraço, então fui ao velório, e como foi bom ter ido! Que forma boa de terminar a última semana “útil” do ano, aquela em que gente começa a fazer balanços. Julgadores precipitados pensarão que enlouqueci de vez: “Como assim, forma boa?! Um velório?!” É que, talvez, se não tivermos tido a chance de conhecer uma pessoa em vida, ainda possamos ser apresentados a ela em seu velório. Talvez possamos descobrir que é pessoa que tem alma que bate com a da gente. Talvez possamos nos sentir felizes por ver que a amiga queria nosso abraço. E talvez porque há velórios e velórios. Neste, astral tão bom! Falava-se o tempo todo em celebração. As pessoas circulavam entre os grupos e vinham nos contar as histórias da tia, mostravam-nos fotos em que ela aparecia linda, tocando violão. Minha amiga me contou que foi ela quem lhe ensinou violão e eu respondi, surpresa: “Como?! Você toca?” e ela me disse que sim, que a tia lhe ensinou, a ela e às irmãs, que tornaram-se multiplicadoras e ensinavam a outros. Eu a conheço há vinte anos e nunca soube que ela tocasse, porque ela não toca mais. Talvez, num velório, aconteça isso: a pessoa velada talvez o apresente a partes desconhecidas das pessoas que você pensa conhecer. Havia outras fotos, uma em que a tia tinha suas próprias orelhas cobertas pelas de um leitãozinho que seria assado, parecia o Yoda. Alguém comentava, rindo: “Era uma palhaça!”. Contaram que ela tinha um verdadeiro arquivo fotográfico da família e dos amigos e lembraram-se sorrindo das montagens mais horrorosas, mas também as mais amorosas possíveis, que ela preparava para celebrar o aniversário de cada um. Contaram história de uma situação em que sua gargalhada despertou olhares de reprovação entre estranhos, olhares que constrangeram a narradora dos fatos e que fizeram com que a tia se dirigisse a ela e dissesse, calma, sorrindo: “Não tem que ficar constrangida com essa gente. Estão achando esquisito que a gente ria? Fui esquisita a vida toda e faço questão de continuar esquisita, de continuar a rir”. Aí ela me ganhou definitivamente: ao se declarar esquisita. Me encheu de esperança de que esquisitos possam ter transição boa, transição alegre feito festa.

Passamos horas agradáveis ali. Conversamos, rimos. Houve um momento em que nos demos conta de quão vazias estavam as capelas do São João Batista. Minha amiga (a gente é meio nerd) me perguntou: será que existem ciclos sazonais para os óbitos? Respondi que nos óbitos decorrentes de causa respiratória, que já estudei, sim. Cheguei em casa e fui verificar uns dados de óbitos diários em São Paulo. Bazinga! Sazonalidade, presente! Marcadinha. O bicho homem é tão previsível que até para morrer a gente escolhe as mesmas épocas. Pelo menos em São Paulo, morre-se mais no meio do ano. Talvez seja igual no Rio e em outras partes. Há ciclos também para nascer. As séries de nascimentos têm lá seus picos e nove meses após o carnaval, nascem os filhos do carnaval. Minhas amigas riram ao ouvir que uma vez tive curiosidade de saber quando eu tinha sido concebida. Contei os nove meses para trás e caía direitinho no aniversário de meu pai. Saquei logo: sou filha da comemoração animada de um aniversário de meu pai e o riso de minha mãe quando revelei a ela minha descoberta comprova a tese. Pensei que deve ser por isso que meu pai abre aquele sorrisão sempre que me vê – deve se lembrar de como tudo começou. A essa altura, já parecia que a gente estava falando ali de qualquer coisa, mas não. Falávamos de vida, desde a origem dela até o final (ou mudança de fase, depende do que se acredite). Ocorre que o tempo todo em que estive ali, não consegui parar de pensar no que realmente importa: o que se desenrola entre o instante seminal e o momento da mudança de fase. Pensei, o tempo todo, em que bênção é ter tido uma vida tal que tantas pessoas, espontaneamente, tenham histórias a contar sobre ela. Tão abençoada a ponto de todos sorrirem ao contar essas histórias. Ninguém ali falou de grandes realizações, aquelas que o mundo assim classifica. Falou-se do quanto aquela vida doou, de si, às outras que estiveram a seu redor. Fui me sentindo feliz naquele improvável lugar de ser feliz. Feliz por ser possível, como a tia provava, ser esquisito em um mundo ordinário; viver uma vida inteirinha linda e coerentemente esquisita.

Saí dali e tinha compromisso em seguida. Fui no carro pensando em tudo isso e pensando que este ano, se não houve tempo para comprar presente, que assim fosse. Achei mais importante estar presente para um abraço. Eu é que não vou entrar em shopping num 23 de dezembro só porque alguém decidiu que presentes precisam ser comprados a todo custo nesta semana. Não estive presente à assembleia em que se decidiu isso e não enviei procuração para que decidissem por mim. Quero o presente que eu olhe e no qual veja a pessoa que quero presentear. Acho que essa troca de olhar que preciso ter com cada presente tem que ser mais íntima, sem o testemunho das centenas de pessoas que estarão quase se estapeando em volta, em cada shopping, em cada centro comercial.

Distraída com meus pensamentos, errei o caminho – como acontece sempre – e, ao errar, vi a vitrine de uma lojinha escondida, lojinha de coisas artesanais com cheiro bom: sabonetes, aromatizantes, creminhos, tudo lindo, colorido, perfumado e naturebinha do jeito que eu gosto, daquelas coisas boas que penetram pelos olhos, a pele e as narinas e ganham morada na memória da gente. Havia a pessoa com quem iria me encontrar e que tanto me ajudou, ao longo do ano todo, a despertar minhas memórias, pessoa que tanto me acolheu, que me ajudou a viajar no cheiro das minhas memórias. Entrei na lojinha, que tinha vaga na frente, sem qualquer stress, sem flanelinha, sem ter que esperar vaga e comprei aquilo que, sem nem saber até ali, era exatamente o que eu queria comprar. Saí de lá pensando: tá vendo que quando a gente resolve entrar em conexão com nosso ritmo interior, o ritmo do universo acaba, de alguma forma – talvez meio mágica – se ajustando ao nosso ritmo?

Precisaria esperar algum tempo até meu compromisso. Liguei para a mãe e para a irmã para combinarmos a ceia de Natal. Somos família que gosta de cozinhar e para que a ceia se transforme rapidamente em um banquete, não custa muito. A coisa começava a se encaminhar para isso. Aí lembrei as reflexões do início da tarde no velório, lembrei meu propósito de me ater ao que vale e pedi que fôssemos comedidos: uma entrada, um prato principal com carne, um vegetariano, poucos acompanhamentos. A irmã negocia: “Mas e a torta de bacalhau que eu amo?”. Ok, mas por favor guardemos tempo para o que importa: nos sentarmos à mesa ou no ambiente em torno dela e deixarmos que a memória fale, que os sonhos para o futuro sejam bem-vindos na conversa. É disso que o pai gosta e combinamos que este Natal seria dele. Sobremesa? O gelado de abacaxi da mãe, que a gente ama e que não tem pompa, mas leva a gente para uma outra mesa exatamente como esta, quando os dois ainda não tinham as cabeças tão branquinhas. Que um pouco de vinho libere nossas emoções, que a gente talvez chore no meio de um monte de riso, que a gente se olhe de verdade, se fale, se ouça, se sinta. Que a gente não fique embaraçado por se emocionar ao pensar que há fins inevitáveis e tampouco subestime a felicidade por todas as bênçãos que temos tido. Que sejamos gratos, que esperemos o ano que chega com a mesma certeza que nos foi passada pelos dois corações enormes que acompanham as duas cabeças branquinhas, certeza que havemos de passar adiante: a de que o amor é força motriz de homens e do mundo e finalidade última de tudo, enfim, até o fim. Então, que a vida comece, transcorra e termine (ou prossiga) plena dele, cheia de Amor.