Dizem, nas pequenas cidades, que realização é ver os filhos ganhando o mundo e a vida da cidade grande. E lá se vão os filhos, malas em punho, viver a vida que se espera dos realizados. Alguns se adaptam e conseguem até encenar pertencimento à selva de asfalto. A alguns, estranhamente, ela fascina. Para outros, a cidade grande será sempre lugar pequeno, espremido, opressor.

Na cidade grande faltam horizontes, abrem-se janelas para dar-se de cara com quartos alheios. Pagam-se quantias exorbitantes por cubículos de onde, ao invés de se mirar o horizonte, o sol e a lua, espia-se a cama desarrumada do casal que, cedo, saiu apressado, sem comer, deixando a cama assim, sem carinho, sem amor, sem ordem, sem afeto, sem cheiro de lavanda – para nada disso há tempo. Na cidade grande, por vezes é possível ver a roupa estendida no varal alheio a poucos metros de distância. Roupa que não recebe sol, raras roupas brancas que vão-se amarelando por falta de espaço para quarar. Roupa branca é como a alma da gente: para se manter alva, radiante, precisa da luz do sol. Na selva de asfalto, embora haja alguns espaços amplos, há que se estar atento: ninguém sabe onde e quando a ameaça pode pular à nossa frente e nos roubar, junto da bicicleta, a paz. Faltam frutas no pé e pássaros cantando soltos e horizontes distantes e sorrisos e gentilezas. Falta cadeira de balanço com  livro à mão para passar a tarde balançando debaixo de manta quentinha e viajando outros mundos inventados por alguém. E falta café, com bolo perfumado que saiu do forno, e bolinhos quentinhos e fritos, com pedacinhos de banana derretendo por dentro e passados no açúcar com canela, a pretexto de esperar a chuva passar.

Não quero os bolos pagos nas cafeterias da selva, essas que tentam artificialmente criar ambientes de acolhimento que façam com que, por alguns momentos, a selva ganhe ares e cheiro de lar. Desses bolos, há muitos, desde que se pague por eles – mais quantias exorbitantes – pode-se escolher à vontade. São bem feitos, com precisão de  receitas guardadas a sete chaves, jamais reveladas – imagine! – mas carecem de alma. No fundo, os habitantes da selva sabem que podem cobrar o quanto quiserem por momentos de acolhimento e os que pagam sabem o quanto vale aquilo por que estão pagando, aquilo que estão buscando: nas selvas, as pessoas andam sôfregas por uma bebidinha quente que as abrace por dentro e algum aroma que as faça lembrar do que nunca tiveram, mas imaginam que possa existir.

Na selva, não há vizinha trazendo pedaço do doce que acabou de preparar, não há partilha, com frequência não há sorriso ou bom dia nos elevadores, que são lugares de estranhamento e desconforto. Os habitantes da selva sentem-se estranhos com a proximidade do outro, o que é, por si, estranho: vivem tão amontoados, tão desprovidos de horizonte e espaço e ainda assim incapazes de aproximação uns dos outros…

Os habitantes das selvas vão-se entupindo de aquisições – assim gostam de referir-se a suas pesadas tranqueiras: “aquisições!” -, vão comprando carros cada vez maiores, cheios de trações que nunca viram estrada que precisasse delas, carros que nunca se cobriram de lama, carros que só servem para espremer o outro nas apertadas vagas das garagens que não comportam mais carros, para oprimir os outros nas apertadas ruas que carecem de passos, de gente, de bolas, pipas e bicicletas. Cobrem-se de camadas de artificialidade, tentando construir a vida que viram no comercial de margarina. Vida tão artificial quanto a própria margarina, que nem alimento é, que nada nutre. Pagam pela vida do comercial de margarina. E tudo isso tem preço alto. Quanto mais vazios se sentem,  mais pagam, mais compram, porque querem manteiga artesanal, mas para esta, é preciso mais do que o dinheiro pode pagar, então vão vivendo à base de margarina.

Para mim, quero manteiga feita da nata do leite gordo, tirado da vaca que tem nome, quero bolo com cobertura e recheio, ainda que não tenha finalização esteticamente perfeita, mas que seja assim como a vida: verdadeira, recheada e farta de  nutrição e sabor. Quero bolo feito em casa e tempo para o lanche acompanhado de conversa calma; quero florinhas nos vasos e jardineiras cuidadas e bichos correndo ao sol e árvores de onde se colham amoras para a geleia; quero a lembrança de quem me fez o bolo e a geleia e um lugar onde o sol me visite pela manhã e de onde eu possa ver o verde.

Por enquanto, sento ao calor do sol e vejo o verde de um cantinho escondido no meio da selva, com visão ampla da mata e das montanhas que me fazem sentir perto do lugar que me é natural, na varanda onde não cabem mais plantas, mas que acolhe o banho de sol dos gatos e recebe os pássaros pela manhã e ao fim da tarde. Por enquanto, são alguns metros quadrados da vida sonhada. Falta o dia a dia com grama para deitar e horta onde plantar o que comer e árvore grande  e forte, que dê frutos  e onde se pendure balanço, e que ainda acolha orquídeas e bromélias. Falta um cachorro enorme e amigo dos gatos, também seus amigos, que pule em cima de mim, me lamba a cara, tente engolir meus brincos  e me derrube no chão de tanta alegria por me ver e por sentir meu amor. Por enquanto. Mas um dia… ah, um dia…

 

Foto: Evelyn Müller